Que uma noite mal dormida resulta, em geral, num dia de maior cansaço e menor capacidade de concentração é algo que já todos sentimos. Mas os malefícios de dormir pouco e mal são muito mais profundos, podendo resultar, inclusive, num aumento do risco de morte antecipada. A propósito do Dia Mundial do Sono, que este ano se assinala a 19 de março, a Sociedade Portuguesa de Neurologia (SPN) lança o 5.º episódio da websérie SINOPSE, no qual a Dr.ª Inês Carvalho (interna de Neurologia no Hospital de Braga) entrevista a Dr.ª Isabel Luzeiro (neurologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e presidente da SPN).
Uma noite bem dormida é essencial para o equilíbrio físico e mental. “Durante o sono, ocorre a restauração da energia, a reparação dos danos tecidulares, a síntese de proteínas, a regulação do metabolismo e a reposição dos sistemas imunitário e endócrino. O sono tem uma função restauradora, protetora e de limpeza das substâncias tóxicos no organismo”, explica Isabel Luzeiro.
Segundo a especialista, em média, os adultos devem dormir cerca de oito horas. No entanto, quase metade dos portugueses dorme, em média, menos de seis. Quando o tempo e a qualidade do sono são insuficientes, dá-se um desequilíbrio e as suas funções não são adequadamente realizadas. “Além de uma má noite de sono fazer com que, logo no dia seguinte, tenhamos irritabilidade, falta de concentração e dificuldade em memorizar, a privação do sono também leva à secreção de cortisol, originando, a longo prazo, obesidade e alterações cardíacas que, por sua vez, agravam as patologias do sono.”
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 40% da população mundial tem um distúrbio do sono. Esta situação é agravada por estilos de vida pouco adequados ao ritmo natural do corpo e, por exemplo, pelo trabalho por turnos. “Sabemos que estar 20 horas seguidas sem dormir equivale a beber uma garrafa de vinho, ou seja, afeta profundamente a capacidade de concentração e raciocínio”, exemplifica a presidente da SPN.
Um período de sono normal tem quatro a cinco ciclos, que podem ser divididos em sono REM (rapid eye movement) e não REM. “Na fase REM, ocorre um movimento rápido dos olhos e a reposição das memórias associadas à emoção. O sono não REM, que constitui dois terços do tempo a dormir, divide-se numa parte superficial e noutra profunda, na qual são repostas a memória declarativa e a memória de trabalho. Uma boa noite de sono implica que todas estas fases decorram em percentagens adequadas”, explica a neurologista.
Tipos de perturbações do sono
De acordo com Isabel Luzeiro, a insónia é a queixa mais comum, podendo ocorrer no início, a meio ou no final do período de sono. As causas podem ser variadas, desde a ansiedade e a depressão à existência de uma dor crónica que faz com que a pessoa acorde várias vezes durante a noite. Outra causa de insónia é a síndrome das pernas inquietas, que consiste numa sensação desconfortável dos membros superiores ou inferiores associada a uma vontade irresistível de os mover, que leva a pessoa a acordar durante a noite.
Outra situação relativamente frequente é a síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS), que constitui uma obstrução das vias aéreas superiores durante o sono. Pode ser parcial, dando origem ao ressonar, ou total, provocando uma paragem respiratória. No segundo caso, os níveis de oxigénio diminuem, dado que não existe passagem de ar para os pulmões, provocando um despertar. Segundo Isabel Luzeiro, é frequente uma pessoa ter mais do que uma patologia do sono: por exemplo, SAOS e síndrome das pernas inquietas.
Outras causas de perturbação do sono, geralmente menos expressivas, são os pesadelos e os terrores noturnos nas crianças. Existem também várias patologias neurológicas, como a doença de Parkinson, que afetam o sono. Já a narcolepsia é caracterizada por um excesso de sonolência diurna. “A pessoa adormece frequentemente durante o dia, mesmo tendo dormido toda a noite, e pode ter outros sintomas, como deixar descair a boca ou ter alucinações”, refere a neurologista.
COMO MELHORAR O SONO?
Recomendações da Dr.ª Isabel Luzeiro
- Andar a pé, manter o peso controlado e fazer exercício físico (sem ser muito próximo da hora de deitar ou de acordar);
- Não beber álcool, não fumar e evitar bebidas excitantes, como chá, café ou refrigerantes com cafeína;
- Dormir com a luz apagada e utilizar roupas adequadas, largas e confortáveis;
- Procurar deitar-se e acordar sempre à mesma hora;
- Não tentar forçar o sono nem ir para a cama demasiado cedo: caso não consiga adormecer, a pessoa pode ir ler um livro, por exemplo, até o sono aparecer;
- Recorrer a técnicas de relaxamento, como mindfulness, ioga, pilates ou métodos de autocontrolo;
- A medicação é uma alternativa apenas quando as medidas não farmacológicas falham e deve ser sempre orientada pelo médico.
Diagnóstico dos distúrbios do sono
Segundo Isabel Luzeiro, os meios de diagnóstico para caracterizar os distúrbios do sono dependem da patologia de que se suspeita. O registo poligráfico noturno, que pode ser realizado em laboratório ou em casa, “permite avaliar vários parâmetros durante a noite e diagnosticar diversas patologias, como a SAOS”. Este exame pode incluir vídeo, que é um meio útil para verificar se o doente tem pesadelos, terrores noturnos ou sonambulismo. Pode também ser associado ao encefalograma, permitindo verificar, por exemplo, a ocorrência de uma crise epilética durante a noite.
No entanto, o registo poligráfico noturno em laboratório não é o exame mais adequado para o estudo de uma insónia, por exemplo. “A pessoa estará numa cama diferente, num ambiente desconhecido, com vários elétrodos ligados, e não vai conseguir dormir. Nestes casos, devemos fazer uma actigrafia, em que se coloca uma espécie de relógio no pulso do doente, que vai detetar a imobilidade e o movimento. Este aparelho, utilizado entre 8 a 15 dias, permite perceber quando o doente adormece e quando acorda durante um período de sono”, explica a neurologista.
Em caso de suspeita de síndrome das pernas inquietas, pode ser feito um teste de imobilização, no qual, tipicamente, a pessoa com esta condição sente desconforto ao ficar imobilizada enquanto está sentada. No caso da narcolepsia, são normalmente testados diferentes períodos de sono, de modo a perceber a tipologia das sestas.
Tratamento farmacológico
A medicação para os distúrbios do sono também depende das patologias que estão na sua origem. Isabel Luzeiro defende que, em geral, há que implementar todas as medidas de estilo de vida e de higiene do sono recomendadas; só no caso de estas se revelarem insuficientes ou de ser detetada alguma patologia mais grave é que devem ser adotadas medidas farmacológicas. “No caso da insónia, não devem ser usadas benzodiazepinas, dado que tratam o problema temporariamente, mas depois passa o efeito.” A alternativa são os antidepressivos ou neurolépticos.
No caso da SAOS, podem ser utilizados dispositivos – como uma prótese de avanço mandibular ou um CPAP (continuous positive airway pressure), consoante a gravidade da situação – que visam manter as vias áreas desobstruídas. Já na síndrome das pernas inquietas, os agonistas dopaminérgicos são uma das terapêuticas recomendadas. “Antes de tomar qualquer medicação, vá a um médico especialista. Se ele indicar que deve fazer algum tratamento, faça-o, sem receios”, aconselha Isabel Luzeiro.