16 Junho 2021 SINOPSE

Portugal é o país com mais casos de amiloidose hereditária por transtirretina

Portugal é o país com mais casos de amiloidose  hereditária por transtirretina

Apesar de ser uma doença rara, com 10 mil casos estimados em todo o mundo, a amiloidose hereditária por transtirretina (amiloidose ATTRv) é mais comum em Portugal – por exemplo, quase metade dos doentes identificados na Europa são portugueses. No 6.º episódio da websérie SINOPSE, a Dr.ª Ana do Carmo Azevedo (interna de Neurologia no Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga) entrevista a Prof.ª Teresa Coelho (diretora do Serviço de Neurofisiologia e responsável pela Unidade Corino de Andrade do Centro Hospitalar Universitário do Porto) sobre esta doença hereditária, cujo tratamento evoluiu significativamente nos últimos anos.

Muitas vezes chamada de paramiloidose ou doença dos pezinhos, a amiloidose ATTRv é uma doença hereditária autossómica dominante. Ou seja, basta que o pai ou a mãe tenham a patologia para que haja uma probabilidade de 50% de transmissão aos filhos. O nome da doença decorre da deposição de amiloide, uma substância insolúvel que lesa lenta e progressivamente vários tecidos do corpo. “Estes depósitos são provocados pela agregação de uma proteína que todos temos em circulação, a transtirretina, que é produzida sobretudo no fígado, para transporte da vitamina A e da hormona tiroideia. As pessoas com amiloidose ATTRv têm um defeito no gene que comanda a produção dessa proteína, deixando-a mais sujeita a formar depósitos de amiloide”, explica Teresa Coelho.

Esta deposição de amiloide ocorre por todo o corpo, mas afeta mais alguns tecidos, nomeadamente os nervos periféricos – que ligam o cérebro e a medula espinhal aos músculos e à pele. “Com os nervos periféricos afetados, as pessoas perdem a sensibilidade ao toque e à dor em alguns órgãos, bem como a capacidade de dar ordens aos músculos para que se mexam. Também ocorre uma desregulação do funcionamento dos aparelhos digestivo, cardiocirculatório, urinário e sexual. Ou seja, há uma grande diversidade de sintomas e problemas causados por esta neuropatia”, esclarece a neurologista. O coração também é frequentemente afetado pela amiloidose ATTRv, seja através da perturbação do ritmo ou da miocardiopatia infiltrativa, isto é, uma infiltração nas paredes do órgão que não o deixa funcionar como uma bomba eficaz.

Esta doença, que foi descrita pela primeira vez por um médico português, Mário Corino de Andrade, nos anos de 1950, está hoje identificada em mais de metade dos municípios do país, embora com uma distribuição bastante assimétrica. Vila do Conde, Póvoa de Varzim e Figueira da Foz têm algumas das maiores concentrações de doentes, bem como a região da Serra da Estrela. A distribuição da amiloidose ATTRv no mundo também é bastante díspar, mas Portugal é o país com mais casos identificados. “Quase metade dos doentes conhecidos na Europa são portugueses. Admite-se que haja 10 mil doentes em todo o mundo, mas pode haver mais por diagnosticar”, refere Teresa Coelho.

PORQUÊ DOENÇA DOS PEZINHOS? 

Em geral, as doenças dos nervos periféricos começam por manifestar-se nos pontos mais distantes do sistema nervoso central. Por isso, tipicamente, a amiloidose ATTRv começa por provocar perda de sensibilidade e de força nos pés. Depois, a doença vai subindo lentamente e acaba por afetar o corpo todo. “Com frequência, os doentes desenvolvem feridas, queimaduras e dificuldade em mexer os pés, que podem ficar deformados ou ser mesmo amputados”, explica Teresa Coelho. Este impacto nos membros inferiores levou à popularização do nome doença dos pezinhos. No entanto, importa não confundir a amiloidose ATTRv com o teste do pezinho, que é o rastreio neonatal de várias doenças, que se realiza através da colheita de uma gota de sangue no pé do recém-nascido.


Início na idade adulta

A amiloidose ATTRv afeta tanto homens como mulheres e tem início na idade adulta, podendo aparecer desde os 18 anos até ao final da vida. Em Portugal, a idade média de início da doença ronda os 30 anos. Nestes casos de início precoce, a neuropatia é mais comum, com mais sintomas digestivos, perturbação geniturinária e perda de autonomia. Como a doença tem uma grande variabilidade genética, há países onde é mais habitual um início de doença tardio. Nesses casos, tipicamente, a neuropatia é mais marcada pela perda de sensibilidade e força, e menos por sintomas digestivos e geniturinários. Em contrapartida, as complicações cardíacas são mais frequentes.

Segundo Teresa Coelho, os doentes com amiloidose ATTRv de início mais precoce têm quase sempre história familiar da doença, pelo que, normalmente, já reconhecem os sintomas. Já no caso da doença de início tardio, os doentes não costumam saber que têm história familiar e o diagnóstico pode ser atrasado pelo facto de as queixas terem pontos de contacto com as de outras patologias mais associadas ao avançar da idade. “Quando aparecem os sintomas de neuropatia, pensa-se logo na diabetes. Além disso, se um homem de 70 anos começa a ter problemas urinários, a primeira causa em que se pensa são as perturbações da próstata”, exemplifica a neurologista.

O atraso no diagnóstico, que, em alguns casos, chega a ser de vários anos, pode ter consequências graves. “A lesão dos nervos periféricos e a lesão do coração não podem ser revertidas. Por isso, se demorarmos cinco anos a chegar ao diagnóstico e deixarmos que o doente perca a sensibilidade do corpo ou a capacidade de se mexer, já não vamos conseguir recuperar essas aptidões”, alerta Teresa Coelho.

Diagnóstico e tratamento

De acordo com a especialista, o procedimento de diagnóstico mais importante é o teste genético, que permite identificar a presença do erro que caracteriza a amiloidose ATTRv. “É uma simples análise de sangue, que pode ser feita mesmo que a pessoa não tenha sintomas, mas sabendo que tem história familiar. Deste modo, tendo conhecimento de que é portadora do erro genético, a pessoa estará mais atenta ao aparecimento de sintomas e terá esse facto em conta na decisão de ter filhos, por exemplo.”

Por norma, o teste genético é complementado com a biópsia de uma mucosa (por exemplo, do lábio inferior), para verificar se existe depósito da substância amiloide. Além disso, analisam-se as queixas e alterações neurológicas e cardíacas que o doente apresenta. Para tal, a par do exame físico, podem realizar-se exames cardíacos e neurológicos mais específicos. 

O primeiro tratamento para a amiloidose ATTRv foi o transplante hepático, que passou a ocupar um papel secundário com o aparecimento do primeiro medicamento, de toma oral, que é utilizado em Portugal desde 2011. Em 2018, foram aprovados dois fármacos injetáveis, “que são mais eficazes em fases mais avançadas da doença e na generalidade das mutações existentes no mundo”, afirma Teresa Coelho. Os três medicamentos disponíveis permitem atrasar muito significativamente ou mesmo parar a progressão da doença. “Temos doentes a tomar medicação há dez anos que estão exatamente como estavam aquando do início do tratamento”, sublinha a neurologista, reiterando a importância do diagnóstico precoce, para que o tratamento seja instituído antes que a doença evolua para fases de grande incapacidade do doente.